Por Welson Barbato, psicanalista com formação no Instituto Sigmund Freud e psicólogo formado pela PUC. Disponível em: <https://hypersonic2012.wordpress.com/antigona-o-desejo-tomado-como-verdade/>. Acesso em 09/03/2023.
ANTÍGONA
O DESEJO TOMADO COMO VERDADE
Por WELSON BARBATO
Só os mártires são sem piedade e sem temor (Lacan, seminário 7).
Freud visitou a tragédia grega desde os primórdios da psicanálise. Encontrou em “Édipo Rei”, de Sófocles, a estrutura mítica e ambígua do desejo, representada por sua contundente força pulsional e, simultaneamente, por sua insígnia precocemente marcada pela rivalidade e pela destrutividade. Escreve a Fliess em 1897[1] transmitindo sua interpretação da tragédia a partir do saber sobre o desejo inconsciente no interior da preciosa encruzilhada edipiana. Nela, se aloja, desde Freud, a dimensão que determina a posição sexual do sujeito marcada pela castração e explicita seu principal efeito: o sujeito como resto, como traço e como herdeiro do objeto perdido.
É nesse sentido que a tragédia de Sófocles se conceitualiza no freudismo, instituindo-se como um enunciado que alude à trama dos desejos incompatíveis e sua consequente ambivalência afetiva. Esse evento desenha o viés da condensação entre o desejo incestuoso e o desejo parricida – base da fundamentação do Complexo de Édipo a partir de 1900.
Mas, antes de tudo, Édipo aponta para uma significação essencial a respeito da verdade do desejo. Ao indagar miticamente o campo do saber e da verdade por vias metonímicas, produz o horizonte da transformação do mero saber – como sinonímico ao conhecimento e à verdade – em desejo de saber que se estabelece como condição princeps da práxis psicanalítica. Ao incumbir-se de um enigma, Édipo depara-se com as origens e com as contradições formais do desejo e suas derivações. É plausível alegorizar que o “lugar analisante” no personagem emana da estrutura que hoje nomearíamos como Desejo de Analista, desejo esse que se formaliza como operador analítico por excelência, organizando-se – tática e estrategicamente – em torno do vazio da verdade concebida como substância. É esse o vazio oferecido pelo analista para que a estrutura constituinte reatualize a origem dialética da demanda, na sua inerente relação com o Outro. Assim, Édipo “caminha” da alienação basal do sujeito (ausência de retificação) para uma revelação que é a marca e a expressão de um furo no saber (cegueira), de onde se faz o terreno sempre trágico do desejo: o horroroso gozo do incesto, o aniquilamento proveniente da angústia diante da plena consistência e a falha da operação metafórica do Nome-do-Pai.
Para Maria Inês França, no entanto, é em “Antígona” que se representa esteticamente a recorrência do trágico. Nela, temos a repetição do análogo desejo incestuoso na origem, ao corporificar a ausência discursiva do campo da satisfação e da diferença, cujo estatuto é o motor de toda simbolização possível e da composição do sujeito. No seu valor de mito e no ventre de sua melancolia, Antígona reconstrói o território da origem incestuosa e precária de Lei (signo dos “labdácidos[2]), na medida em que almeja o vínculo com o irmão morto na égide de uma unidade. (FRANÇA, 2012 p. 105). É esse o desenho obrigatório e peculiar da obra de Sófocles, pois materializa a prova trágica do impossível do desejo. Esse impossível é corporalizado, como sempre, na metonímia da demanda e na sua qualidade de não inscrição e de perda.
No seminário A ética da psicanálise (LACAN, 1959-1960/ 1991. p. 301), Lacan defende que a essência da peça gira em torno da apofania que demonstra a posição de Antígona no bojo de sua função de discurso. Trata-se, antes de tudo, do desejo da morte antecipada, recorrentemente aludido na trama e que se cumprirá em ato. A personagem profere e evidencia o estatuto da causa discursiva como um pensamento fora do sentido dos ditos, se quisermos tomar o discurso como um fato de estrutura e não exclusivamente como fruto de uma montagem semântica. Desse modo, a contundente e severa reivindicação pelo funeral do irmão Polinices, ecoa analiticamente como um semblante que carrega significantes conectados ao regimento das identificações e seus regressos. Portanto, o enfrentamento e a desobediência à lei que Creonte explicita e representa, circunscrevem a fenomenologia do discurso de Antígona (transcurso de termos), e não sua função discursiva (posição conectada ao “objeto morte”). Enfim, o núcleo da linguagem delineia-se como a posição do discurso e nunca como o discurso em si mesmo. Estamos, nesse sentido, no interior do postulado lacaniano do discurso sem palavras, inerente ao matema da posição do analista.
Nessa perspectiva, o corpo-resto do irmão e o apego de Antígona pela morte, a enlaçam reincidentemente ao pai e à sua inesquecível tragédia: ao escolher sua sentença de morte, se identifica com o “banido”, perpetuando o recalcamento e seu inevitável retorno. Solicita a presentificação do cadáver (seu pai, seu irmão Polinices), insistindo na simbolização de sua própria morte e, portanto, no impossível da passagem do real em simbólico. A aposta no impossível (tomado aqui desde a Lógica Modal Alética lacaniana) reitera o espaço “idêntico-a-si-mesmo” do gozo. Diz Antígona: Minha vida, há muito renunciei a ela, a fim de ajudar os mortos. A sentença demarca uma dupla função: a reincidência em si e o perene esboço para instaurar uma retificação que redundará, paradoxalmente, no mesmo da repetição. Não podemos esquecer que, pouco antes de sua morte, Édipo atribuiu à Antígona a função de detentora de sua visão perdida. Em suma, Antígona é dita como aquela que detém o perdido! (“Édipo em Colono”[3]) Essa convocação se engendra logicamente no terreno da demanda que, como tal, não cessará de se reproduzir e de não se elaborar, já que a qualidade de “perdido” dirigida ao objeto é insolúvel, dado seu arcabouço de não-existência (arcabouço lógico e axiomático).
É interessante percorrer a discussão de Maria Inês França no seu livro “Psicanálise, Estética e Ética do Desejo”. Aqui, um pequeno trecho:
É em Antígona que vamos construir no campo do Outro a marca do destino humano. Porque é sobre esta repetição do mesmo, da qual o trágico é inseparável, que Antígona se torna a própria representante do desejo na sua origem. Vamos, assim, enfocar a tragédia em Antígona diante da perspectiva de considerar os desejos incestuosos que a motivam no seu ato de recusar a ordem de Creonte: a morte do irmão Polínices “sem funeral nem lágrimas”.
Entendemos que a oposição de Antígona a Creonte é um traço de negatividade trágico, porque ato que condensa a repetição do mesmo desejo incestuoso de sua origem, porém, também, é ato que indica um “entre duas mortes”, um não à perpetuação da ausência de sentido. A morte de Antígona sela seu destino, ao mesmo tempo em que aponta a relação da paixão com a pulsão de morte como disruptora, corte e acontecimento que instaura a linguagem.
O desejo de Antígona, assim, visa o além de um limite tangível. A insistência destemida de sua realização, o delimita na perspectiva cruel de desejo absoluto, sem nenhuma intermediação que vislumbre o estabelecimento de mínima cadeia metonímica. Por consequência lógica, o suposto vácuo metonímico não permite o deslizamento do desejo no invólucro da demanda, fixando, portanto, o objeto supostamente desejado no limite do insustentável. Metaforicamente falando, Antígona fere o princípio analítico de que o desejo – e sua mobilidade pulsional – se aproveita dos termos da demanda para se exteriorizar. Esse evento – por condições estruturais – não visa um fim pleno, e sim, meios metonímicos que qualificam o desejo desde a mudança constante de objeto (prova cabal de sua inexistência). Como diz Lacan, Antígona credita o desejo ao Juízo Final, isto é, à sua realização exata e integral. Por isso, o status da realização de desejos sempre caminha na perspectiva de condição absoluta, cujos preceitos se alinham aos imperativos do ideal.
Lacan afirma:
Ousando formular uma satisfação que não é paga com um recalque, o tema colocado no centro, promovido em sua primazia, é – o que é o desejo? A propósito disto posso apenas lembrar-lhes o que nessa época articulei – realizar seu desejo coloca-se sempre numa perspectiva de condição absoluta. É na medida em que a demanda está para além e para aquém de si mesma, que, ao se articular com o significante, ela demanda sempre outra coisa, que, em toda satisfação da necessidade, ela exige outra coisa, que a satisfação formulada se estende e se enquadra nessa hiância, que o desejo se forma como o que suporta essa metonímia, ou seja, o que quer dizer a demanda para além do que ela formula. (LACAN, 1959-1960/ 1991, p.353).
Nessa vertente, conforma-se uma equação inusitada que marca a personagem na construção de sinonímias e de objetos inexistentes. Antígona faz coincidir desejo, gozo e verdade pela via de seu inquebrantável anseio, radicalmente sustentado nos princípios das clássicas identidades que restringem, por conseguinte, qualquer eventualidade de modalização. O diálogo inicial com a irmã Ismene é uma ilustração razoável, me parece, da ausência de escansão entre os três termos citados. Mas isso promove consequências fundamentais. A ver: tomar o desejo como similar ao gozo significa revitalizar e reproduzir a determinação do horror do incesto e da morte. Significa também postular que a verdade existirá na simultaneidade crua com qualquer produção de saber. Essa sinonímia é exatamente o que não permite, na clínica, operações de retificação aos ditos, como tempo inaugural da escansão saber e verdade. Não se pode negligenciar que essa retificação é a primeira condição lógica da prova ou demonstração do real. Se os objetos do gozo, do desejo e da verdade ganham valor de existência quase delirante como decorrência de um erro de julgamento (juízo de atribuição), Antígona nos diz da precariedade de sua renúncia ao gozo, ou melhor, da fragilidade da sua produção discursiva na confecção de artefatos “de fala” na direção da contradição ao imperativo. Trata-se da instauração de um campo mínimo de perda ou de dano ao gozo que efetivará a divisão do sujeito, logicamente engendrada pela queda do objeto causa do desejo e de sua fixidez.
Estamos no terreno do mais-de-gozar, cuja função é a da renúncia ao gozo e, portanto, do isolamento do objeto a. Se o sujeito do inconsciente tende a se repetir como perda, o gozo não interceptado pelo mais-de-gozar portaria a dimensão de um absoluto. Lacan afirma que o gozo é um real que sempre retorna ao mesmo lugar, reincidindo na carência de significação (LACAN, 1968-1969/2008, p. 206). Esse enunciado ratifica a dimensão do real como registro marcado pela ausência de intermediação com o significante e, dessa forma, com qualquer objeto. No esteio disso, a função de renúncia do mais-de-gozar realoca e legitima o gozo no território do impossível, ao mesmo tempo em que reativa a metonímia que o desejo realinhará no bojo da demanda. Sem dúvida, essa função expressa certo cálculo – quase moebiano – que autoriza a psicanálise a conceber o desejo como queda de gozo. Essa passagem pode ser verificada (se existirem condições para isso), principalmente no patamar do final de análise, concebido, antes de tudo, como efeito da metodologia clínica e de sua artificialidade. O barramento ao absoluto do gozo permite que o objeto do desejo visite o estatuto do “quase possível” para se tornar contingente.
Da mesma forma, o desejo convocará reiteradamente a verdade a partir de um deslizamento que inviabiliza qualquer univocidade, algo que topologicamente é demonstrado pelo S2 no quarto quadrante do discurso do analista. Nesse quadrante, saber e verdade se separam pela presença de um real, um real da castração. Nesse contexto, o saber encontra seu limite exatamente às portas da verdade. A psicanálise produz aí uma radicalidade importante: a produção de sentido é exatamente aquilo que se afasta da verdade, já que se inscreve como semblante.
Em Antígona, reitero, o desejo coincide com a verdade exatamente por presentificar o objeto pulsional e não a sua queda. O corpo de Polinices é a matéria “viva” da recusa à perda e se instaura brutalmente como fixação ao horror.
Sim, só os mártires são desumanos, diria Lacan.
Referências Bibliográficas:
LACAN, J. (1959-1960) O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
LACAN, J. (1968-1969) O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
LACAN, J. (1969-1970) O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. (1971) O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
Sófocles. A Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
França, Maria Inês (2012) Psicanálise, Estética e Ética do Desejo. São Paulo: Editora Perspectiva.
[1] – J. M. Masson, A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, Rio de Janeiro, Imago, 1978, p.271.
[2] Labdácidos: Descendentes de Lábdaco, pai de Laio e avô de Épido.
[3] Sófocles, “Édipo em Colono” – Zahar Editora – 2011.
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