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Estudo do Inconsciente

 Inconsciente: Perspectivas Filosóficas e Psicanalíticas O estudo do inconsciente tem sido uma das áreas mais fascinantes e complexas da filosofia e da psicologia. Desde os tempos antigos, filósofos têm contemplado a natureza oculta da mente humana, enquanto a psicanálise, especialmente através dos trabalhos de Sigmund Freud e outros psicanalistas contemporâneos, tem lançado luz sobre as camadas profundas da psique humana.  Este breve texto visa explorar essas perspectivas, desde os fundamentos filosóficos até as contribuições contemporâneas da psicanálise, incluindo importantes figuras brasileiras nesse campo. Filosofia e o Inconsciente A investigação filosófica sobre o inconsciente remonta aos tempos antigos, com Platão sugerindo a existência de uma alma dividida em camadas, algumas das quais permanecem inacessíveis à consciência. Aristóteles, por sua vez, discutiu o papel dos sonhos como reveladores de desejos e preocupações ocultas.  No entanto, foi com a ascensão da psicanálise qu

O desejo de analista

 O DESEJO DE ANALISTA: UMA OPERAÇÃO DE MATEMATICIDADE[1]


por WELSON BARBATO


“Que nada mude, que tudo mude”. Eis uma imposição dos tempos atuais. Formulação contraditória? Fenomenologicamente sim, mas não mais que nisso, na medida em que os termos medianos “nada” e “tudo” fomentam um par de opostos que primam pela complementaridade, mesmo que dispostos por antinomia. Sabemos, desde as bases mínimas da dialética e dos princípios analíticos propostos por Freud e firmados por Jacques Lacan, que duas inscrições opostas numa dada estrutura não resultam necessariamente em um território diferencial no gerenciamento da linguagem e na análise dos discursos. 


Nesse sentido, o aparente paradoxo do enunciado se institui apenas nos moldes gramaticais e semânticos consensuais. A “coerência dos antônimos”, por conseguinte, não deriva e nem produz, a priori, hiatos de sentido e nem promove interrogações que se desvinculam das declinações universais de convocação da verdade. Pelo contrário, deparamo-nos com uma cadeia paradigmática e diacrônica que caminha exatamente para o adimplemento de qualquer intervalo de significação. Trata-se, antes de tudo, de uma operação tradicional – já que naturalizada – do uso da linguagem na sua suposta equivalência com a verdade. Essa correspondência se legitima pela demanda a uma resposta que anule o paradoxo, propriamente por não interpelá-lo.


A instituição do discurso psicanalítico, por sua vez, demonstra que uma negativa enunciada exprimiria a verdade paradoxal e não linear de uma afirmação não consentida ou não sustentada pelo falante. O negado referenciaria o seu inverso nos moldes em que Freud nos transmitiu e que leremos como um axioma: Isso – que nego – é algo que eu gostaria de reprimir (FREUD, 1925/2011, p. 278). Reconhecemos nessa asserção dois estilos e campos lógicos condensados, que somente se discriminam – para se conceberem particularmente -, graças ao advento de instrumentos heteróclitos à escuta que fabricam manobras que tratam ou modalizam um discurso. Esses instrumentos removem efeitos de identidade entre termos que, embora se distanciem no campo polissêmico e sinonímico, não fundamentam algo essencial: um discurso tomado sem a análise lógica de seu REFERENTE, não o diferenciaria dos usuais paradigmas gramaticais e semânticos de análise, onde a causa discursiva confunde-se com o seu próprio sentido, negligenciando a divisão entre sentido e significação e entre sentido e referente.


Dessa maneira, dois signos linguísticos em oposição – e na ausência de ferramenta que a questione – fabricam e reiteram superfícies alternativas, embora o elemento excluído permaneça referenciado e inscrito no agente oposto da exclusão. Nesse sentido, o efeito do rechaço opera por simultaneidade geralmente não reconhecida na transcursão usual, fator esse que, em tese, omite qualquer tensão de incongruência entre o falado, seu referente oposto e a produção de uma síntese como primeira e crucial etapa metafórica. Essa ausência suposta de incompatibilidade possibilita que a linguagem se exerça de acordo com seu regimento habitual, onde cada palavra coincidirá consigo mesma. A palavra, desse modo, equivaleria à coisa falada (o “objeto” pensado), camuflando recursos estéticos, suas derivações e desinências.


O importante, então, é que no interior desse estilo imanente à gramática ou à filosofia da linguagem, cada termo pode ser substituído entre si na mesma posição da estrutura a qual pertence, demonstrando, por isso, frágil mobilidade constituinte que compromete a formulação de contradições efetivas. Esse é o estatuto da Lógica Formal, cujas leis e princípios derrogam e não estratificam dissonâncias; uma lógica de dois tempos. Nela, grosso modo, não encontramos o assentamento da diferença como produto de operação que contradiz, mas como efeito antinômico que demanda resolução, mas não necessariamente síntese. Essa indiferenciação é executada no interior dos modelos clássicos de julgamento, atestados pela tradicional indagação do que é verdadeiro e do que é falso.


As obras do filósofo e lógico Aristóteles, compiladas sob o nome de Organon, fundam a Lógica Formal que é matriz do que, grosso modo, se sustenta até hoje em termos de fundamentação do mundo. Aristóteles sistematizou que as proposições da linguagem ou são afirmadas ou negadas; não se concebem como verdadeiras ou falsas ao mesmo tempo. O valor de falso de uma implica, automaticamente, a verdade de outra. Essa concepção produz decorrências na confecção de fórmulas semiológicas que estratificam a linguagem corrente em proposições que se apresentam como universais e particulares, afirmadas ou negadas.


É possível dizer que Aristóteles legitimou o terreno dogmático da não contradição, algo insustentável a partir da experiência analítica. Esse terreno formula a lógica de opostos inicialmente “não relacionados”, sustentada por uma metodologia binária, consistente e livre de contradições. O Princípio aristotélico do terceiro excluído desenha a ilustração por excelência desse raciocínio. Também chamado de Princípio do meio termo excluído, ele estabelece que uma afirmação P num sistema lógico formal é “ou verdadeira ou falsa”, não podendo ser nem “falsa e verdadeira“, nem tão pouco “nem falsa nem verdadeira”. Essas duas interdições constituem o terceiro excluído que contorna o campo do pensamento clássico e das matemáticas tradicionais. A psicanálise, balizada por aparatos dialéticos e/ou paraconsistentes (mesmo que nem sempre esclarecidos), nomeará tais opostos como idênticos, na medida em que um outorga existência lógica (e nunca semântica) ao outro.


Essa existência se institui como semblante de diferença, dado que – por si mesma – não possibilita nenhuma alteração efetiva de posição discursiva ou de queda identificatória, por exemplo. É necessário um operador externo que, num primeiro passo, anule a exclusão de um dos seus componentes como quer a lógica binária, para instaurar o terceiro “não excluído”, formatando o espaço de SÍNTESE discursiva. No entanto, é preciso que essa síntese seja reconhecida e consentida pelo falante, constituindo, assim, uma quarta acomodação além das três posições gramaticais naturalizadas na linguagem (quem fala, para quem fala e de quem/do que fala). O advento dessa eventualidade ATÓPICA ao discurso é uma das funções imanentes do sujeito psicanalítico. Como consequência, o terceiro elemento – agora “admitido” graças à intervenção de manobra extrínseca ao raciocínio formal, reitero – formalizará uma quarta possibilidade topológica que, no raciocínio lógico lacaniano, redundará numa estrutura discursiva tetraédrica. Esse operador é circunscrito por Lacan como um necessário que traduz evidentes intenções metodológicas; é nomeado e formalizado como Desejo do Analista – operador analítico central e demarcador da política da direção clínica. Veremos adiante.


O regimento e o paradigma clínico do recalcamento e do seu retorno (paradigma edípico – primeiro grande modelo clínico/conceitual) exemplificam com vigor como dois elementos discursivos aparentemente opoentes, exercem similaridade no que diz respeito às suas FUNÇÕES de estrutura. Trata-se do que Freud instituiu como a dupla inscrição de pares de opostos no interior de uma mesma matriz sintomática ou espaço psíquico. Essa apreensão freudiana inaugura e delimita – como um de seus efeitos – a concepção de discurso na predicação de semblante. Como tal, todo discurso estaria referenciado a outro lugar não classicamente discursivo ou subjetivo, cuja verossimilhança de oposição ocorreria unicamente desde o cálculo clássico da interpretação discursiva, mas nunca na dimensão dialética que não concebe a Lei da Identidade em si mesma. É nesse sentido que se estabelece, por exemplo, a coincidência entre o recalcamento e o seu retorno, exatamente o que modelará o sintoma analítico – numa primeira noção alegórica – como “moebiano”, antes de ser apreendido como “borromeano”.


Mas é importante que se esclareça que a função da Síntese Discursiva no interior da psicanálise, se legitima, exatamente, na dessimetria de algo que representaria o sujeito ou que faria alusão a alguma substancialidade. O sujeito analítico – sabemos – não é ontológico e, por isso, não se ordena a partir das categorias gramaticais do aristotelismo e suas inerentes similaridades com o ser. É um sujeito não simbolizável que prescinde da norma do discurso em si para mapear um lugar ou posição de escuta retificadora. Nesse sentido, a operação de síntese num discurso não é a estratégia final da psicanálise e, sim, uma manobra quase que permanente que visa a saída do binarismo constituinte da linguagem imperativa. Diria, mesmo que alegoricamente, que se trata do primeiro tempo da derivação de uma lógica de termos opostos e idênticos, para uma mínima estrutura ternária suportada pelo terreno da contradição não classicamente atributivo.


Nessa perspectiva, ao referir-se à lógica positivista aristotélica e à sua função hipotética, Lacan afirma que o juízo de atribuição em nada prejulga a existência, ao passo que a simples formulação de uma VERNEINUNG implica a existência de algo que é, precisamente, aquilo que é negado (LACAN, 1971/2009, p.19). Em suma, na posição lógico-positivista o real inconsciente não encontra palco de existência. É o campo da contradição que comparece como refinado aparelho de interpretação dos preceitos do terreno semântico da oposição, tanto por serem lugares assimétricos desde o ponto de vista lógico (e não do ponto de vista de suas vastas significações dicionarizadas), como também por garantir que a interpretação não opere exclusivamente desde os elementos intrínsecos ao interpretado. Essa eventualidade é o que permite certa transcendência metodológica e o almejado fracasso da interpretação como mero utensílio tautológico de tradução ou de infinita reincidência metonímica.


A ascensão do elemento terceiro excluído, então, inaugura o primeiro tempo da demonstração do real. É o mesmo que dizer da primeira etapa da delimitação do vazio no seio de dois grandes princípios de mestria: o princípio da não contradição e o princípio da razão suficiente. São postulados que regem os tradicionais raciocínios da linguagem usual e da ciência. Em tese, o princípio da não contradição não pode ser desalojado, pois os sistemas de saber se tornariam inconsistentes e se desarranjariam. O princípio da razão suficiente, por sua vez, defende que tudo tem uma causa, em geral, uma causa formal e nunca material. Desse modo, a fratura do exercício da mestria outorga existência a algo que não se encontra na realidade e que tramita como obra dos impasses advindos da ferramenta da contradição. O objeto falo é o grande paradigma disso, ou melhor, é a prova lógica de que algo pode entrar em contradição e não permanecer perenemente na dicotomia dos objetos pulsionais: bom/mau, mestria/ignorância, etc. Para que a contradição se efetive é necessário o verbo na terceira pessoa afirmada e ao mesmo tempo negada, o que possibilita que uma negativa derive para uma existência não-idêntica-a-si-mesma.


A metáfora e operação analítica do terceiro incluído incorporam e admitem um espaço entre os valores tradicionais de “verdadeiro” e “falso”, permitindo outro paradigma de referência.  Oferecem o “hiato” que fratura a lógica antinômica, incluindo exatamente o que não está e o que não existe (escansão entre real e realidade, por exemplo). Tal possibilidade metodológica se conforma como efeito do manejo transferencial e do ato interpretativo que, aliados ao Desejo do Analista, formatam os três operadores por excelência da condução clínica.


Temos, então, o ato clínico de interpretar profundamente conectado à ética da impossibilidade dos saberes plenos sobre as equivalências e, como decorrência, fiel à inerente artificialidade que o ato requer. Enfim, a interpretação na práxis analítica tem sua égide no estabelecimento da radical diferença, evitando o engodo da vetorização infindável que visa à construção perene de outros sentidos, que permitem, inclusive, a sólida ilusão da metalinguagem. Inversamente, portanto, a interpretação vetoriza para o limite da linguagem. Esse limite é a própria diferença não substancializada e esteio da interpretação. O que não é pouco. Não se trata, em suma, de modalizar um “texto” inúmeras vezes e, sim, eventualmente, de fazer “cessar” artificialmente seu automatismo, mesmo que a partir dos entraves inerentes a essa ocorrência.


O analista trata de discursos. Trata para não traduzi-los como tais, pois a mera tradução, repito, promoveria o infinito da produção de significações e, até mesmo, de signos. Um signo é, antes de tudo, um elemento acéfalo, o que mais propriamente se aproxima da lei lógica formal do objeto-idêntico-a-si-mesmo. Assim, a psicanálise lacaniana – no manejo da linguagem – não é nominalista, pois desconstrói os paradigmas universais da instância do imaginário e seus enlaces de densidade. Nessa perspectiva, temos um primeiro postulado ou axioma no que diz respeito à concepção psicanalítica de discurso: é preciso concebê-lo como uma estrutura, definida, antes de tudo, pela não linearilidade.


Mas o que é estrutura? Precisamos defini-la minimamente. Grosso modo: é a “maneira como as partes de um todo estão dispostas entre si”. Que estejam dispostas, não significa que se alinhem numa relação de sentido. A definição de estrutura pela via do registro matemático, por sua vez, nos interessa, já que Lacan efetua e postula o discurso no abrigo de uma operação de matematicidade. Diz essa definição: “Caráter de um conjunto resultante das operações nele definidas e das propriedades dessas operações”. O que é matematicidade, por sua vez? Trata-se de uma “exatidão rigorosa” que se expressa pela configuração de cálculos operacionais, cálculos esses que, na clínica lacaniana, encontram condições de aplicabilidade. Portanto, falamos de uma topologia onde a PALAVRA ou o TERMO não exercem função central e definitiva e que alude à arbitrariedade do significante na sua disjunção paradigmática com o significado.


A esse respeito, é fundamental recordarmos a insistência lacaniana em retrair do discurso seu caráter de autonomia. Cito, para isso, o início do seminário 16:


Meu dizer, no entanto, não se presta a nenhuma ambiguidade. Não vemos por que o fato de se poder enunciar, de se haver enunciado que não existe um ponto de fechamento do discurso, tenha como consequencia que o discurso seja impossível, ou mesmo simplesmente desvalorizado. Muito longe disso. É precisamente a partir daí que desse discurso vocês têm a incumbência, em especial a de bem conduzi-lo, levando em conta o que quer dizer o enunciado de que não existe universo do discurso. Da minha parte, portanto, não há nada a corrigir nesse aspecto. Cabe-me simplesmente voltar ao assunto para dar os passos seguintes, detalhando o que se induz de consequências do discurso já formulado. Talvez também precise voltar ao que pode fazer com que, por mais ligado que esteja um analista às condições desse discurso, seja possível mostrar assim, a todo instante, a sua falha. (LACAN, 1968-1969/2008, p. 15).


O sujeito do discurso, assim, se ordena como produto da articulação significante, determinado por ela. Não há o sujeito na condição de autor do discurso que profere e, sim, reitero, uma estrutura tetraédrica com seus quadrantes e vetores que elucidam precisamente a topografia da alienação do sujeito. Desse modo, o discurso determina o sujeito, mas não o tem como referência central. Reside aí um golpe no ideal imagético de algumas terapias e análises, dada à inexistência da particularidade discursiva. Em outras palavras, o advento do particular na estrutura da linguagem somente se delineia, numa primeira etapa, como operação de subtração. Pela via da fundamentação lógica e estrutural, subtrai-se (para posteriormente contradizer) algo do registro do imaginário em direção ao real. Nisso reside um dos desejos da psicanálise, se assim posso dizer: deslocar o imaginário da sua função suprema de deflagrador de discursos e dos imperativos das atribuições do ser. Essa manobra encontra novamente no Desejo do Analista – pela via de artefatos táticos e estratégicos – o franqueador do vazio no bojo das literalidades universais.


Se dissermos do vazio, inevitavelmente apontamos a qualidade de semblante de todo discurso. O semblante é o significante em si e, por isso, delimita uma contraposição fundamental à posição lógico-positivista. Ele se confunde com o próprio regimento discursivo que evidencia uma perda e nunca uma complementaridade. Há um termo que está fora da rede do significante – o objeto a – e que vetoriza a base discursiva para a região do gozo e da pulsão, nas suas quatro etapas formais (campo não discursivo). O semblante, nessa perspectiva, é a prova do furo semântico, refinadamente demonstrado, por exemplo, na separação entre saber e verdade, tida como uma das operações basais para o estabelecimento do discurso analítico. A escansão saber e verdade, então, apoia-se nos meandros do mais-de-gozar e fundamenta o advento da repetição como perda, enlaçando o registro da demanda/gozo como da ordem do impossível.


Em 1968, Lacan fundamenta o que concebe como essência do discurso analítico e sua conexão com o campo do automatismo de repetição. Vejamos:


Assim como o trabalho não era novo na produção da mercadoria, a renúncia ao gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é nova. Desde o começo, com efeito, e ao contrário do que diz ou parece dizer Hegel, é ela que constitui o senhor, o qual pretende fazer dela o princípio de seu poder. O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa a essência do discurso analítico. (LACAN, 1968-1969/2008, p. 17)


E Lacan prossegue e reitera:


O mais-de-gozar é uma função de renúncia ao gozo sob o efeito do discurso. É isso que dá lugar ao objeto a. Desde o momento em que o mercado define como mercadoria um objeto qualquer do trabalho humano, esse objeto carrega em si algo da mais-valia. Assim, o mais-de-gozar é aquilo que permite isolar a função do objeto a. (LACAN, 1968-1969/2008, p.19)


Torna-se claro, desse modo, que a repetição em Lacan é uma engrenagem submetida à busca de um objeto sempre fugidio, impossível de alcançar. Lacan distingue duas classes de repetição, analisando desde a herança aristotélica: a tiquê que se articula ao registro traumático, ao simbolizável e o automaton, profundamente ligado à pulsão de morte, ao real. Esta não se inscreverá exatamente por se firmar como a reincidência por excelência que não busca o idêntico e que denota, mais uma vez, o limite da palavra e a destituição do simbólico como instância capital na direção clínica. É essa a repetição que o processo analítico almeja e que dará suporte metodológico às essenciais passagens clínicas nos tempos lógicos da interpretação.


Em consonância a isso, não podemos esquecer que o Desejo do Analista se instaura e se resolve em Lacan pela via dos mecanismos inconscientes que conformam um território lógico mínimo, representado pelos termos diferença e repetição. Os significantes funcionam nessa baliza repetitiva, já contida no raciocínio freudiano do deslocamento e da substituição e que redundam num outro postulado analítico: o significante é resultado de cada um dos objetos pulsionais. Esse enunciado comprova a estrutura de ausência do significante e estabelece seu enlace, portanto, com os objetos seio e fezes (objetos da demanda) e voz e olhar (objetos do desejo) no interior das teses analíticas de constituição do sujeito ao redor do falo e sua economia de gozo.


A conformidade objeto pulsional/significante resultaria em quatro posições discursivas e não necessariamente em quatro discursos em si mesmos. Tais conformações e lugares linguísticos podem ser lidos e computados de diferentes formas e estilos clínicos. Podemos representá-las desde as nomeações gramaticais usuais que consideram os tempos e as vozes verbais, mas também a partir do horizonte formalizador e lógico. A primeira perspectiva considera e faz coincidir as vozes verbais com arranjos discursivos que aludem à dialética do lugar do Outro/outro no seio da montagem da linguagem. Em sua primeira e segunda etapas clínicas, pedirão modalização, para depois se estabelecerem na direção e função do vazio (a demonstração do “zero” na análise). São elas: voz ativa, voz passiva e voz reflexiva – fazer, ser feito, fazer-se. Uma quarta eventualidade se ordena da fabricação analítica derivada da travessia da fantasia fundamental e dos efeitos de queda (mesmo que relativa) dos juízos de atribuição do campo da demanda, conectando-se com a posição ATÓPICA mencionada anteriormente. Podemos nomeá-la como voz neutra – deixar-se fazer, sem aí estar. Esse “tempo de voz” legitimaria a posição do analista e seu desejo. Mais ainda, e como consequência inevitável: a voz neutra enseja e reitera o enlace lacaniano de que do final de uma análise um analista se faz. É a voz do final, voz do resto do significante, da disjunção efetiva entre realidade e real e, também, voz da desconstrução mínima da identificação imaginária ao sintoma na sua contundente estrutura de crença.


A outra perspectiva – territorializada por termos lógicos – evidencia os quatro tempos da interpretação acoplados à posição de manejo calculado do analista. Falarei deles descritivamente, já que a fundamentação específica de cada um fugiria dos objetivos desse trabalho. Temos o primeiro tempo como aquele que alude à histerização do discurso como primeira condição para a implicação do falante; aquilo que Lacan nomeará como retificação ao gozo. O segundo, diz respeito à vetorização, onde o analista se posiciona para escutar o significante e o sentido artificial que dele se produz, direcionando a análise para o registro das contradições do campo da demanda, em busca das primeiras respostas representacionais à pergunta por que faço e insisto naquilo que me faz sofrer? Trata-se da possibilidade de dar voz à região que tem no grande Outro seu paradigma: falo, suposição, identificação. Espera-se que nessa etapa da direção do tratamento se constitua o embrião do objeto-não-idêntico-a-si-mesmo e a fratura das significações de saber tomadas como verdades categóricas. Nessa etapa clínica, a escansão entre causa e razão formaliza os registros representacionais de verdade e de falsidade dialetizados. No terceiro momento, o analista estaria na posição de retorificar as afirmações de valor de verdade do “lugar analisante”, fomentando, grosso modo, a separação entre sentido e significação para, posteriormente, derivar e construir uma diferença crucial: sentido e referente. Seria a etapa onde a reincidência da vertente da pulsão de morte não encontraria mais no Outro justificativas de causa e coroaria certa prova do real. Esse tempo mostra-se como crucial à voz e às operações de final de análise, já que circunscreveria a possibilidade de transmissibilidade da estrutura do Desejo do Analista.


A configuração dessa estrutura faz funcionar, por conseguinte, a lógica clínica nas suas passagens fundamentais. O Desejo do Analista é, antes de tudo, um operador lógico que se afasta da qualidade de um conceito, pois não se substancializa. Aloja-se no seio de um saber-fazer que expressa veementemente uma POSIÇÃO DE CÁLCULO nos meandros da singularidade política de cada análise, no seu passo a passo formalizador. Situa-se, assim, no nível da FORMA (naquilo em que esta faz sinonímia com MODO), em contraponto ao terreno conteudístico da amarração discursiva usual. Em suma, esse saber-fazer é um modo de operacionalizar um discurso que não existe em si mesmo e, nisso, reside sua radicalidade.


Essa não existência em si mesmo é retomada por Lacan na introdução ao seminário 18:


… Dito isto, qual pode ser o alcance do que enuncio nessa referência, De um discurso que não fosse semblante? Isso pode ser enunciado do meu lugar, e em função do que enunciei antes. Em todo caso, é fato que eu o enuncio. Observem que também é um fato uma vez que eu o enuncio. Vocês podem não entender nada, isto é, achar que não há nisso nada além do fato de eu o enunciar. Entretanto, se falei de artefato a propósito do discurso, foi porque, para o discurso, não existe nada de fato, se assim posso me expressar, só existe fato pelo fato de dizê-lo. O fato enunciado é, ao mesmo tempo, fato de discurso. É isso que designo com o termo artefato e, é claro, é isso que se trata de reduzir. Com efeito, se falo de artefato, não é para promover a ideia de alguma coisa que seja diferente de uma natureza. Vocês se enganariam ao enveredar por esse caminho para enfrentar as dificuldades, porque não sairiam daí. A pergunta não se instaura nos termos “Isso é ou não é discurso?”, mas como “Isso é dito ou não dito”. (LACAN, 1971/2009, p. 12-13)


E acrescenta:


Se a experiência analítica acha-se implicada, por receber seus títulos de nobreza do mito edipiano, é justamente por preservar a contundência da enunciação do oráculo e, eu diria ainda, porque a interpretação permanece sempre nesse mesmo nível. Ela só é verdadeira por suas consequências, tal como o oráculo. A interpretação não é submetida à prova de uma verdade que se decide por sim ou por não, mas desencadeia a verdade como tal. Só é verdadeira na medida em que é verdadeiramente seguida. (LACAN, 1971/2009, p. 13)      


O cálculo interpretativo e a política do manejo da transferência e suas fundamentações, sustentam e demarcam, então, a metodologia que propõe Lacan e que se alegoriza como a tônica diferencial de seu ensino. Dessa forma, o grande legado lacaniano – antes de dizer respeito a uma teoria ou a um sistema de pensamento- se caracteriza pelo afinco e refinamento em relação a um labor clínico que se sustenta em etapas matematizadas e enodadas, prezando o refinamento tático e estratégico e não a interpretação elucidativa. Em outras palavras, a posição de cálculo se situa no enlace entre uma etapa antecedente e outra consequente, que evidencia certa simultaneidade lógica da práxis. Somente nessa perspectiva que se pode tornar possível à vetorização ao real, exatamente por tomá-lo longe dos ditames das exegeses ou das revelações; o real seria um efeito ou uma demonstração lógica do próprio método e não um lugar preexistente.


Estamos, desse modo, no bojo daquilo que Lacan postulou na década de 70 como o DISCURSO SEM PALAVRAS, enunciado que implica na separação entre TERMO (palavra) e POSIÇÃO (lugar). Tal disjunção desfigura a equivalência entre o que se fala e o objeto do qual se fala e, a partir da lógica modal Alética em Lacan, abre caminho para a existência do sujeito que o Desejo do Analista quer abarcar: aquele que se alinharia entre o necessário e o impossível, estando o objeto no parâmetro da contingência. Temos nisso, uma operação analítica essencial.


Referências Bibliográficas:


GONÇALVES, L. H. P., (2000) O discurso do capitalista: uma montagem em curto-circuito. São Paulo: Via Lettera.


ARISTÓTELES, (1985) Organon. Tradução, Prefácio e Notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editora.


GAUFEY, G. L., (2007) El notodo de Lacan: consistência lógica, consecuencias clínicas. Buenos Aires, El cuenco de plata.


VILLALBA, Ivete (1999) As operações analíticas – seminário inédito. São Paulo.


FREUD, S.(1923-1925). Obras Completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


LACAN, J. (1968-1969) O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008.


LACAN, J. (1991) O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1992.


LACAN, J. (1971) O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2009.


[1] Esse trabalho é o produto final do Cartel “O Desejo de Analista” (2012-2013), no qual exerci a função de mais-um. Apresentado em julho de 2014 no Fórum do Campo Lacaniano – SP. Disponível em hypersonic 2012.

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