Na Psicanálise, tempo e memória só podem ser considerados no plural*
Por Silvia Leonor Alonso, psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso de Psicanálise deste Instituto desde 1980. É co-organizadora e autora das coletâneas Freud: um ciclo de leituras (São Paulo: Escuta, 1997) e Figuras Clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (São Paulo: Escuta, 2002). Autora (em parceria) do livro Histeria (São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004).
*Disponível em> <https://revistacult.uol.com.br/home/o-tempo-que-passa-e-o-tempo-que-nao-passa/>. Acesso em 09/03/2023.
É muito comum pensar no tempo como tempo seqüencial, como categoria ordenadora que organiza os acontecimentos vividos numa direção com passado, presente e futuro, um tempo irreversível, a flecha do tempo, um tempo que passa. Também estamos acostumados a pensar na memória como um arquivo que guarda um número significativo de lembranças, semelhante a um sótão que aloca uma quantidade de objetos de outros momentos da vida, que lá ficam quietos, guardados, disponíveis para o momento no qual precisamos deles e queremos reencontrá-los. No entanto, a forma na qual a Psicanálise pensa o tempo e a memória está muito distante desta maneira de concebê-los. Na Psicanálise, tanto o tempo quanto a memória só podem ser considerados no plural. Há temporalidades diferentes funcionando nas instâncias psíquicas e a memória não existe de forma simples: é múltipla, registrada em diferentes variedades de signos.
Há um tempo que passa, marcando com a sua passagem a caducidade dos objetos e a finitude da vida. A ele Freud se refere no seu curto e belo texto de 1915, A transitoriedade, no qual relata um encontro acontecido dois anos antes, em agosto de 1913, em Dolomitas, na Itália, num passeio pela campina na companhia de um poeta. Ambos dialogam sobre o efeito subjetivo que a caducidade do belo produz. Enquanto para o poeta a alegria pela beleza da natureza se vê obscurecida pela transitoriedade do belo, para Freud, ao contrário, a duração absoluta não é condição do valor e da significação para a vida subjetiva. O desejo de eternidade se impõe ao poeta, que se revolta contra o luto, sendo a antecipação da dor da perda o que obscurece o gozo. Freud, que está escrevendo este texto sob a influência da Primeira Guerra Mundial, insiste na importância de fazer o luto dos perdidos renunciando a eles, e na necessidade de retirar a libido que se investiu nos objetos para ligá-la em substitutos. São os objetos que passam e, às vezes, agarrar-se a eles nos protege do reconhecimento da própria finitude. Porém, a guerra e a sua destruição exigem o luto e nos confrontam com a transitoriedade da vida, o que permite reconhecer a passagem do tempo.
No entanto, no entender de Freud, a nossa atitude perante a morte não implica essa certeza. Se de um lado aceitamos que a morte é inevitável, quando se trata da própria morte tentamos matá-la com o silêncio, desmenti-la, reduzi-la de necessidade à contingência. “No inconsciente, cada um de nós está convicto de sua imortalidade”, afirma Freud, em De guerra e morte: Temas de atualidade. Nada do pulsional solicita a crença da própria morte. Esta só se constrói secundariamente, a partir da morte dos próximos, da dor e da culpa pela mesma. Nem a própria morte nem a passagem do tempo têm registro no inconsciente, afirma Freud.
O tempo do inconsciente não é um tempo que passa, é um “outro tempo”, o tempo da “mistura dos tempos”, o tempo do “só depois”, o “tempo da ressignificação”.
A forma na qual se constroem as lembranças nos mostra isso, assim o explicita Freud em um texto de 1899, As lembranças encobridoras, valendo-se de um exemplo que, embora não revele no texto, é uma lembrança dele mesmo que surge durante umas férias de sua adolescência. Quando Freud tinha 16 anos viajara para Freiberg, sua cidade natal, sendo este o primeiro retorno desde a sua infância. Nesta ocasião, vive uma paixão por Gisela, a primogênita da família que o hospeda. Trata-se de um momento no qual, para Freud, os projetos de futuro estão em jogo: a sobrevivência econômica e o amor. Nesse momento, surge nele uma lembrança infantil: três crianças, entre elas ele mesmo, brincam e colhem flores numa campina verde e coberta de flores amarelas. Formam ramos de flores e os meninos arrancam o que está nas mãos da menina por ser o mais lindo. Ela corre, chorando, até uma camponesa que lhe oferece, para seu consolo, um pedaço de pão. Eles vão também atrás de um pedaço de pão que a camponesa lhes entrega. Nesta lembrança dois detalhes se destacam: a força do amarelo das flores e o sabor do pão, tão acentuados que beiram à alucinação.
O retorno à cidade natal mobilizara em Freud as vivências da infância, reativando marcas mnêmicas, marcas sensoriais de detalhes aparentemente insignificantes – porém fundamentais – que são carregadas pelas lembranças e às quais estas devem a sua vivacidade. Marcas da erotização e também dos lutos, da ausência de objetos. Essas marcas se oferecem como pontos de contato com as fantasias posteriores que sobre elas se projetam, criando pontos de condensação. Assim, duas fantasias que tocam temas fundamentais da vida do jovem Freud – a fantasia amorosa com a moça da família que o hospeda e a fantasia sobre sua sobrevivência econômica – projetam-se sobre a lembrança infantil que lhe faz de tela. O amarelo do vestido que a moça vestia no primeiro encontro faz um ponto de condensação com as flores da infância, intensificando o amarelo das flores da lembrança. Da mesma maneira, a fantasia sobre a sua sobrevivência econômica, através da frase “ganhar o pão”, confere uma intensidade maior ao sabor do pão na lembrança. Fantasias, lembranças e pensamentos de épocas posteriores se enlaçam simbolicamente com as da infância, intensificando, deformando ou transformando a lembrança infantil. Estas lembranças são as lembranças encobridoras.
Mas não é um tipo especial de lembrança que nos interessa e sim a dinâmica psíquica que nela se põe em jogo e que pode ser estendida à construção das fantasias e ao funcionamento geral da realidade psíquica. Neste funcionamento, a memória não é única nem fixa, ao contrário, as lembranças vão sendo construídas num processo de retranscrição. Freud inaugura uma teoria da memória ao afirmar que o material das marcas mnêmicas reordena-se de tempos em tempos, formando novos nexos. Na constituição da lembrança há, portanto, uma mistura de tempos. Os tempos não mantêm uma cronologia, passado, presente e futuro se misturam, se confundem. A lembrança infantil é como um quadro. O espaço do enquadramento é dado pelo próprio texto da lembrança, no qual se combinam traços. Traços que revelam as marcas de erotização e também os processos de luto vividos que deixaram as marcas do objeto ausente. Ou seja, há um passado que se cria e se recria em novas articulações.
Ao assinalar a existência deste outro tempo que é o tempo da ressignificação, Freud distingue o funcionamento do inconsciente do da consciência e rompe com a idéia de uma causalidade linear, de um passado que determina um presente, afastando-se de um determinismo mecanicista. Não procuramos no passado a causa do presente. O que passou se fez realidade psíquica.
A história de um sujeito não é, portanto, uma linha reta, mas é traçada por pontos de condensação nos quais as tramas do vivido se entrecruzam e pulsam,- forçando a presença do passado no atual, resistindo a qualquer linearidade cronológica e construindo uma realidade psíquica que não coincide totalmente com a realidade material.
O tempo do après-coup é um conceito fundamental no arcabouço teórico freudiano. Há acontecimentos da infância que se inscrevem difusamente, marcas psíquicas que ficam informes, indefinidas, à espera de um acontecimento e que só depois adquirem sentido. Temos então a idéia de um passado que não é fixo, mas que se ressignifica no presente.
Nesse “outro tempo” que não respeita a cronologia, nesse tempo do só depois, há movimento – que retranscreve, que articula novos nexos, rearticula as inscrições do vivido – construindo sonhos no dormir, fantasias e pensamentos na vigília. Há movimento das dimensões pulsionais e desejantes que, misturando os tempos, produz novos sentidos. O tempo não passa no sentido do tempo seqüencial, numa direção irreversível, mas, na mistura dos tempos, as marcas mnêmicas nas mãos do “processo primário” condensam-se, deslocam-se e criam novos sentidos.
Mas há também, no psiquismo, uma outra relação entre passado e presente na qual o après-coup parece não operar mais, a imobilidade impera, assim como “eterno retorno do mesmo”, como mera insistência pulsional, fazendo do passado um destino. “Neurose de destino”, dirá Freud. No funcionamento da compulsão de repetição, o pulsional mais puro, sem possibilidade de representação, se encarna no atual, se apossa dele como sombra vampiresca e, no fora da linguagem, perde-se qualquer possibilidade de fazer o luto, de transformar a perda em ausência. Nessa presença da pulsão pura, a expressão “o tempo não passa” ganha toda a sua força.
A diferenciação dos funcionamentos temporais no psiquismo está presente ao longo da obra de Freud, sendo um dos fios importantes da metapsicologia freudiana. As concepções de memória e causalidade psíquica subvertem a psicologia da consciência e são parâmetros básicos que fundamentam a clínica psicanalítica.
Referências bibliográficas
FREUD, S. (1915). De guerra y muerte. Temas de actualidad. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu editores.(vol.14).
FREUD, S. (1915). La transitoriedad. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu editores. (vol. 14).
FREUD, S. (1899). Los recuerdos encubridores. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu editores. (vol. 3).
PONTALIS, J. B. (2005). Este tiempo que no pasa. Topia editorial. Buenos Aires.
LAPLANCHE, J. (1980). La sexualidad. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión.
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