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Estudo do Inconsciente

 Inconsciente: Perspectivas Filosóficas e Psicanalíticas O estudo do inconsciente tem sido uma das áreas mais fascinantes e complexas da filosofia e da psicologia. Desde os tempos antigos, filósofos têm contemplado a natureza oculta da mente humana, enquanto a psicanálise, especialmente através dos trabalhos de Sigmund Freud e outros psicanalistas contemporâneos, tem lançado luz sobre as camadas profundas da psique humana.  Este breve texto visa explorar essas perspectivas, desde os fundamentos filosóficos até as contribuições contemporâneas da psicanálise, incluindo importantes figuras brasileiras nesse campo. Filosofia e o Inconsciente A investigação filosófica sobre o inconsciente remonta aos tempos antigos, com Platão sugerindo a existência de uma alma dividida em camadas, algumas das quais permanecem inacessíveis à consciência. Aristóteles, por sua vez, discutiu o papel dos sonhos como reveladores de desejos e preocupações ocultas.  No entanto, foi com a ascensão da psicanálise qu

Filme “Mãe só há uma”, de Anna Muylart

A seguir, uma análise psicanalítica baseada no filme “Mãe só há uma”, de Anna Muylart, lançado em 2016. O filme acompanha a história real de um garoto que foi roubado de uma maternidade e criado pela mulher que o roubou, sendo que a obra retrata alguns momentos junto a esta mãe e os acontecimentos posteriores, com a reunião do garoto com sua família biológica. 

O grupo pôde discutir questões de identificação, construção de personalidade e os efeitos do trauma da perda da mãe e da antiga vida do garoto.


Análise

O filme retrata a história de um garoto de 17 anos que vê sua vida mudar completamente ao descobrir que sua mãe o tinha roubado na maternidade e que seus pais biológicos o estavam procurando.

No filme é retratada a história do garoto Pierre, que vive com sua mãe e sua irmã (Jaque). O garoto está passando por um período de descobertas em sua vida, descobrindo sua sexualidade e identidade. Neste contexto, a polícia se aproxima da família com a suspeita de que sua mãe teria o roubado de uma maternidade. 

A mãe é omissa, chega tarde em casa, e não dá muita atenção aos filhos.

Após serem submetidos a um exame de DNA, é descoberto que realmente esta mulher não era a mãe biológica de Pierre, e com isto ela é presa por ter roubado o garoto. Os adolescentes acabam sendo cuidadas pela tia (prima do pai) e assistente social por um curto período, mas os pais biológicos de Pierre aparecem e querem que o menino faça parte de suas vidas. É um momento difícil na vida de Pierre, que passa a ser chamado por outro nome, Felipe, pela família biológica, composta por seus pais e um irmão mais novo (Joca). 

Quando Jaque também é dada como roubada de outra família, a menina é levada por sua família biológica, o que separa de vez os irmãos de criação. Neste momento, Pierre (agora sendo chamado de Felipe) passa a apresentar mais mudanças em sua personalidade e autoimagem. O garoto, que já gostava de explorar sua expressão de gênero utilizando artefatos ditos “femininos”, como esmalte de unhas e batom, passa a querer usar vestidos também. Isso acaba sendo uma mudança turbulenta para sua família, com um pai machista (Matheus) e uma mãe super protetora (Glória), que não se demonstra permissiva como sua mãe de criação. Por vezes seus pais biológicos apresentam atitudes até mesmo controladoras. Projetam um filho que não existe. Cria-se um grande conflito.

Em paralelo se passa a história do seu irmão biológico, mais novo. Está sendo rejeitado por uma garota do colégio. E também pela família, que agora só tem atenção para ter o "Felipe". Há diversas situações conflituosas ao longo da trama, que tem na última cena a poética de Pierre na cama procurando informações sobre a irmã pela Internet e o irmão mais novo com demanda de afeto por um objeto perdido, figura feminina, que agora identifica no irmão.

A escolha do filme foi uma forma de dissertar sobre os conceitos aprendidos em aula sobre algumas instâncias da primeira tópica do aparelho psíquico, que faz alusão ao consciente, inconsciente e pré consciente. 

Pensamos que alguns acontecimentos na vida de Pierre foram reprimidos e recalcados durante o período de latência, e aprés coup, com o trauma da perda da mãe de criação e da irmã parece haver o retorno do recalcado. O conflito fica posto quando a família biológica decide que Pierre não é mais Pierre, que Pierre é Felipe. 

Uma cena que chama atenção é após a prisão da mãe e a visita da assistente social na casa. Pierre se tranca no banheiro, olha no espelho, olha para o seu corpo, se depila e passa batom. Acreditamos que neste momento os primeiros sintomas do seu conflito de identificação se afloram.

Podemos usar esta cena do filme para descrever um pouco sobre o conceito de identificação em psicanálise, que designa "o processo central pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando em momentos-chave de sua evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam" (ROUDINESCO, p. 363, 1998).

Em suas cartas a W. Fliess, em 1986, Freud relata que "a identificação é concebida como o desejo recalcado de 'agir como', de 'ser como alguém'". (ROUDINESCO, p. 364, 1998).

Vale acrescentar texto do capítulo XII do livro Psicologia das Massas e Análise do Eu, onde Freud disserta que "a identificação é a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa" (Freud, 1921, p.60). O pai da psicanálise prossegue:

O garoto revela um interesse especial por seu pai, gostaria de crescer e ser como ele, tomar o lugar dele em todas as situações. [...] ele toma o pai como ideal. [...] Ele mostra, então mostra duas ligações psicologicamente diferenciadas: com a mãe, um investimento objetal direto; com o pai, uma identificação que o toma como modelo. [...]. É de um contexto mais complicado que extraímos a identificação numa formação neurótica de sintomas. [...] Ouvimos que a identificação é a mais antiga e original forma de ligação afetiva; nas circunstâncias da formação dos sintomas, ou seja, da repressão, e do predomínio dos mecanismos do inconsciente, sucede com frequência que a escolha de objeto se torne novamente identificação, ou seja, que o Eu adote características do objeto. (Freud, 1921, p.60-63)


Pierre não possui uma figura de pai em sua vida, sendo criado por uma mãe solteira e com uma irmã caçula, o garoto não possui uma figura masculina que possa ser seu objeto de identificação, portanto é provável que esta identificação tenha sido feita com sua mãe adotiva. É provável que, quando o garoto se olha no espelho, esteja buscando as características do objeto em si mesmo, e que por este motivo ele incorpora cada vez mais elementos femininos em sua imagem.

Já em cena seguinte, a família biológica está reunida no restaurante. Com o assunto de que Pierre toca em uma banda de rock, o pai diz que também tocava. E faz um brinde ao Felipe. Há um silêncio, a assistente social intervém e ele corrige, dizendo um brinde ao Pierre. 

Outra situação desconfortável surge com o assunto futebol e Pierre diz que não gosta do esporte. Ele levanta-se e vai no banheiro. Joca vai atrás dele. Parece que, ao se ver confrontado com um assunto tipicamente “masculino”, o futebol, Pierre se sente acuado por não se identificar com as expectativas dos pais biológicos do que um garoto da idade dele se interessaria. Pare que Pierre demonstra uma angústia por não conseguir expressar a identificação que sente com a figura feminina, talvez por pressão externa e falta de aceitação das pessoas próximas. Ele percebe as expectativas de sua família e prefere se abster e se isolar, enquanto tenta entender seu lugar nesta nova realidade.

Podemos usar esta cena do filme para pensar um pouco sobre o conceito de repressão e recalque em psicanálise. Enquanto o primeiro termo designa "a inibição voluntária de uma conduta consciente" (ROUDINESCO, p. 659, 1998), o segundo designa "o processo que visa manter no inconsciente todas as ideias e representações ligadas às pulsões e cuja realização, produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo, transformando-se em fonte de desprazer". (ROUDINESCO, p. 647, 1998).

Acreditamos que Pierre tenha recalcado a figura do pai. A partir do que se mostra na trama, o menino perdeu o pai cedo, tendo recalcado algumas questões na passagem do Édipo. Não houve identificação com pai. Aliás, todo sintoma é uma realização substitutiva de um desejo recalcado. Logo, todo sintoma é uma identificação.

Para melhor compreensão, vale destacar a faceta da identificação regressiva na teoria freudiana, "cujas modalidades de formação constitui-se da imitação não da pessoa, mas de um sintoma da pessoa amada". (ROUDINESCO, p. 364, 1998). 


Na sequência do longa metragem, um novo acontecimento chave é a descoberta de que Jaque também foi roubada e seus pais biológicos a levam embora. Sueli, a tia, ajuda o sobrinho descarregar a raiva oferecendo cigarro, como ele não fuma, ela dá pratos que ele quebre jogando no chão. Eles se abraçam.

A tia, comovida com a situação do garoto, ajuda-o a dar destino a sua pulsão de agressão ou de destruição (pulsão de morte). Entende que o sobrinho passa por momento difícil. Evocamos aqui "no que concerne ao organismo, as pulsões de morte contribuem, por intermédio da angústia, para instalar o sujeito na posição depressiva, feita de medo e destruição". ROUDINESCO, p. 632, 1998). 

De volta à tela, em reunião com a família biológica e demais parentes, há ênfase no nome Felipe. Em vários tons, de diversas direções, inúmeras demandas, inclusive músicas como "O Felipe voltou!". Aquele nome parece causar um mal estar em Pierre. A diretora do filme, inclusive usa efeitos de distorcer a imagem para causar enjoo.

Certo dia Felipe vai ao shopping com os pais comprar roupas. Há uma tensão na escolha dos vestuários, já que os pais parecem querer decidir o que o filho irá vestir. Eles falam, sem o menino ouvir, sobre o tipo de roupas querem que o menino use, e eles citam camisas, blazers e roupa social, que é o tipo de vestimenta que o pai usa. Eles parecem estar tentando fazer com que o menino se adeque ao tipo de roupas que eles preferem. Vale nota que o menino costumava usar roupas de cores muito fortes, pretas e estampadas. Após longo impasse, Felipe aparece de vestido e pergunta aos pais o que acham, diz que gostou da cor. Há uma briga. Matheus se demonstra muito intolerante com a escolha do filho, age violentamente com ele.

Em cena posterior a família está no boliche, Felipe usa um outro vestido, vermelho, e todas tentativas joga a bola à canaleta.

Matheus começa ficar irritado, insistindo para o filho jogar direito. Ele responde dizendo que não gosta de jogar boliche. O pai questiona que ele não gosta de jogar futebol, não gosta de jogar boliche, que não gosta de se vestir como homem. E ele diz que não é obrigado a ser quem ele não é. O diálogo entre os dois merece atenção:

-- Qual o limite para não te perder? Não pode te contrariar que a gente pode te perder a qualquer momento. (...) Te perder de novo e de novo e de novo, de todas as formas. De quantas formas você quer que a gente te perca.

Pierre responde:

-- Tudo que estou pedindo é que você aceite que eu sou assim.

Há uma discussão e uma briga. Pai e filho se agarram. Pierre grita:

-- Vocês acham que eu escolhi estar aqui? Vocês acham que eu escolhi ser roubado duas vezes? Eu fui roubado na maternidade e fui roubado por vocês. Vocês roubaram a minha vida!

A mãe se aproxima chamando-o de filho e ele responde dizendo para que pare de chamá-lo de filho, pois ela não é sua mãe. O irmão mais novo fica perplexo, olha para os pais, ambos bem abatidos. 

Podemos usar esta cena do filme para descrever um pouco sobre o conceito de fantasia em psicanálise, que designa "a vida imaginária do sujeito e a maneira como este representa para si mesmo sua história ou a história de suas origens". (ROUDINESCO, p. 223, 1998).

Matheus e Glória possuem um ideal de filho no seu imaginário e este não se projeta em Pierre. O Felipe, filho que eles têm em fantasia, não existe. Pierre entra em conflito ao desconhecer esse objeto perdido dos pais biológicos. Não se reconhece como tal e extravasa suas emoções.

Por fim, na última cena do filme, Joca bate na porta do irmão senta do lado e pergunta o que está fazendo. Pierre diz que está procurando a irmã na Internet. Os dois se olham. Joca encosta a cabeça nos ombros do irmão, que o acolhe.


Considerações finais

O filme mobiliza conteúdos de uma realidade difícil de crianças e jovens em famílias desestruturadas e nos leva a refletir sobre a função materna e paterna, a criação dos filhos e a importância dos primeiros anos de vida para a constituição do sujeito e suas identificações.

O protagonista enfrenta dilemas que muitas crianças enfrentam ao lidar com a fantasia dos pais no que desejam para os filhos, a questão da sexualidade, tão delicada na puberdade, e sobre o roubo de crianças em maternidade, um problema social que assola com a vida de famílias inteiras.

Podemos pensar o filme como uma forma de entender como se dá o processo de identificação, principalmente na infância, onde a personalidade da criança está sendo formada, e como esta noção de identidade pode se modificar com o tempo e com as mudanças e traumas na vida do sujeito.

Por fim, consideramos que filmes são excelentes instrumentos de aprendizado visto que relacionados os conceitos aprendidos em aula com uma história que podemos encontrar em nossa profissão e devemos estar sensibilizados.


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